20.12.05

Reconstrução

Colar os pedaços sólidos, restantes, da paz
mesmo se poucos
mesmo se Caravaggio enlouqueceu
para iluminar os violinos.

Construir uma figura sem braços
mesmo se cega
mesmo se o único gesto possível
é agora o chão que o pede.

Erguê-la. Equilibrá-la.

Haverá céu sobre a pele
sobre a pedra, e nós existiremos
quietos
no mundo.

Esquecê-la.

14.12.05

Poema do avesso da eternidade

Há uma multidão que grita, o ar de pedra sobre os móveis,
a escuridão das janelas fechadas. Ruído, sobretudo: o lugar
onde não reconheces o silêncio ou os sons, entre todos,
que são os teus. Pesa, é de pedra o ar e é preciso repeti-lo:
sedimentada e suspensa, porém, para que possas mexer-te nela
ainda que todos os movimentos sejam demorados e difíceis.

Engoles o que ficou da destruição de mil estátuas, as mesmas
que usaste para aprender a segurar uma colher, a alisar a saia,
a pentear o cabelo. A pedra rasga a garganta ao descer,
o corpo espera o corpo funciona o corpo resolve.

E espera-se encostado à parede e acredita-se
um ar de pedra a arranhar a garganta, não para sempre,
um ar imutável de pedra imutável a descer pela garganta
entre a mesma manhã e a mesma noite
e diz-se da clausura e da quietude involuntárias que são indolência,
evitando-se assim a desdita maior das irmandades lamuriantes,
extremamente irritantes, mesmo para um condenado.

Depois, um dia, é preciso recomeçar a respirar. Diz-se.
Mas antes é preciso que chova, que o frio traga um ar limpo,
coisas que nunca irão acontecer porque és imutável encostado à parede.
Antes é preciso semear à sombra, é preciso que venha o coveiro,
que traga pá, flores, lençóis rasgados nos cantos do muito uso,
lençóis escurecidos com a última transpiração dos defuntos.
E tu não te voltas, a parede é lisa e clara nas tuas costas, e não sabes.

6.12.05

O fim do mundo

É segunda-feira, são quatro da tarde e
o mundo acabou enquanto eu não estava cá
– sem que entretanto tenha começado
outro
mundo.

Ocorrem-me movimentos, rotinas, gestos,
quotidianos e fáceis – agora podia
fazer café, podia vestir um casaco –
mas para todos eles deixou de haver tempo
– sem que entretanto tenha começado
outro
tempo.

Sei estar de pé quando chego casa, sei fechar a porta,
acender as luzes ainda que sejam excessivas, sei
esperar em frente ao que ficou dos teus olhos:
o mundo seguinte, a tristeza maior, o sol,
horas onde o torpor nada encontre de nós,
uma gaveta larga onde possa caber a morte,
a primeira manhã
– sem que entretanto tenha nascido
outra
manhã.

10.11.05

Dantes as coisas

Dantes as coisas não eram assim
Nada parecia vir a ser isto
- a porta, a lareira, os frutos, a casa
Agora tudo é diferente
Agora ela arruma as coisas,
todas as coisas visíveis
- as romãs na prateleira,
teias de aranha entre os lençóis,
laranjas e lápis afiados no
parapeito da janela
Agora está tudo nos seus lugares

Agora ela senta-se à espera

13.10.05

leite

depois de anos e anos a confirmar o silêncio
bebendo água à porta do seu oráculo de bronze
anos em que o corpo lhe inchou
desmesuradamente
a mulher, sentada entre as árvores,

um dia
rebentou

e dos rasgões abertos na pele jorrava,
vivíssimo, espumoso, o leite
de boca branca e aberta
derramando o ventre pela encosta

lá onde estavam as pessoas
a torrente fez retesar as narinas
o leite subia, ávido,
colando-se às pernas frouxas dos homens e das mulheres
falava-se baixo, cerrando os dentes
e havia quem subtilmente limpasse
um fio branco do lábio superior

12.10.05

São então estas

São então estas as pessoas que visitam
as casas das outras pessoas.

As pessoas que se sentam
à mesa das outras pessoas.

As pessoas que se deitam
na cama das outras pessoas.

As pessoas que seguem com o riso
o riso das outras pessoas.

São então estas.
As pessoas.

27.9.05

A birra

Dez minutos de choro bastariam,
se não me obrigassem a ser crescida.
Viriam ver-me chorar alguns brinquedos que perdi:
a bola que desapareceu pelo muro do quintal num dia frio;
a boneca que ficou debaixo de uma árvore depois de um piquenique;
o triciclo vermelho, esquecido no alvoroço de catar caricas na lama seca.
Todos únicos, todos insubstituíveis, todos grandes perdas,
todos assombrosos berreiros na separação.
E eu, manifestamente inocente, de goela à mostra,
sozinha num planeta inteiro de cúmplices perversos
que não arrancam os cabelos na minha desgraça,
que não se ajoelham em desespero comigo e
que ainda me propõem um sol ao lado do meu,
quase igual, nem vais notar, é tão bonito,
quando é claro que o mundo assim não pode continuar,
eu não posso continuar, nem mesmo com outra bola,
outra boneca ou outro triciclo.
Dez minutos.

23.9.05

Mocho

Chegado pois o dia de distribuir
todas as coisas que possuía,
eu sem saber – o dia
apanhada de surpresa com nada
mais que um mocho morto
no chão da sala
ave calada e macia
Tudo o mais desaparecera
excepto aquele mocho de cor parda
como um ninho
esvaziando-se tranquilamente
Bela ave, penso eu olhando-o,
bela ave no chão da minha casa
foste tu que levaste a minha casa?
Quando eles vierem eu não terei
mais nada para lhes dar
e para mim nunca quis nada tanto
quanto este mocho fechado
onde pouso as mãos
como pode ser só isto, penso
mas ainda assim hão-de querer-te também
eu sei
ainda que lhes repugne o silêncio
e a morte
a tua beleza de ave fria e delicada

16.9.05

Haja tristeza que baste

Haja tristeza que baste
para chegarmos ao Inverno.
Tristeza que baste para que os dedos
da minha mão toquem os dedos
da minha outra mão.

Haja tristeza que baste para a sagrada imitação do riso.
Tristeza que baste para mantermos a temperatura da pele.
Para apagarmos as marcas dos nossos passos.

Haja tristeza que baste para acordar os pássaros
e para espantar os espíritos da casa.
Haja tristeza que baste para que a mesma história
seja contada de forma sempre diferente.
Haja tristeza para lavar os dentes muito brancos,
tristeza para haver vontade,
tristeza para que o pescoço se alongue lentamente
quando subirem as águas do rio.

Haja tristeza que baste para
enchermos a gaveta de coisas inúteis
e para não pensarmos hoje na morte.

30.8.05

O que às vezes imagino em frente aos espelhos

Abrir a pele do peito com as mãos:
uma página para cada lado, como nos livros.
No lavatório, o avesso líquido dos gestos.

28.8.05

Dedal

Usa o dedal
para não picares os dedos
- dizia-me a minha avó,
e eu não usava o dedal
nem picava os dedos.
Com a agulha desenhava carreiros
de formigas pela bainha fora,
pregava botões de dois e quatro olhos,
franzidos, fitas e colchetes -
trabalho de rigor e paciência
que me educou na medida dos minutos
para maior glória e beleza
das minhas bonecas.

Com a mesma agulha tentava
mais tarde juntar o que no meu
corpo a cada dia se separava
em metades: os seios, o sexo,
as ancas e também o olhar
tirando as medidas
ao chão e ao tecto da casa.
As mãos, uma de cada lado.
À noite, também sem dedal,
cosia e descosia no
meu peito os mamilos.
Vestia-me e despia-me em silêncio.

22.8.05

Leva-me à tua aldeia

Leva-me à tua aldeia
leva-me de novo à tua aldeia

Pois na minha aldeia eu
semeei a peste
afoguei os cães e os gatos
queimei as árvores e os navios
arranquei as roupas dos velhos
e atirei-os para a beira da estrada
deixei as crianças morrer à fome
e pior que isso
parti-lhes todos os brinquedos
envenenei os caminhos e os pátios
enegreci a água das fontes e amaldiçoei a luz

Por isso
leva-me por favor à tua aldeia
há-de haver a tua aldeia
ou deixa-me ao menos uma pedra fechada na mão

21.8.05

Impérios

Os dedos das mãos.
Os dedos dos pés.
A pele do nariz.
O pó do chão.
O pêlo da gata.
Os meus cabelos.
As férias da empregada.
As férias do meu chefe.
Os ponteiros do relógio.
A noite que não tenho.
O som da guitarra.
O laço do medo.

Hipótese

Se eu não for dançar
Sejam os vidros das janelas
E o chão dos pátios
Cobertos de água
(Seja a chuva clara
E não pese sobre a mão)
Permaneça o musgo rente ao muro
E sigam ordenadas as formigas
Sem ocorrência de catástrofe maior
Que a do zelo húmido dos cães

19.8.05

Ser a mão que

Ser a mão que prende a flecha
o tempo devorando a flecha
a boca que tritura o silvo da flecha
o olho alucinado do girassol
cravando na luz a flecha

11.8.05

Que bonitas estavam

Que bonitas
estavam as mulheres
que vi hoje
passar na rua
- vêm decerto da casa
do meu amante

E como traziam
os olhos longos de
corça a ruminar
o sabor espesso
dos ombros e do ventre
do meu amante

As suas pernas ressoam
ainda como cordas
e das mãos soltam-se
os dedos com que
contaram os dentes
do meu amante

Irrepetíveis são
os seus passos
pela cidade e largo
o caudal que abrem
quando vêm da casa
do meu amante

22.7.05

Cidade nova.

É meio-dia, está calor e
eu estou na rua errada.

Uma só porta chega, do frio da pedra,
do frio da sala alta.

Diz que tem janelas,
Janelas como vigias a controlar a luz,
E que no tecto não se desfez a madrugada.

Visto-me.
A minha avó vem de longe pentear-me.
Atravessaremos juntas o sol todo até à casa da minha tia,
pensa.
Mas a porta passa porque a cidade é nova e
a minha avó diz que tenho o cabelo muito empeçado,
que já não tem mais tempo.

Só uma porta.
Nenhum átrio sombrio.
A água cala-se.

20.7.05

Vem ver a minha casa

Estas são
as minhas
quatro
paredes

Esta a porta
de sair e entrar

E as janelas
fica com uma
se gostares

17.7.05

Fósforo

Temos medo do escuro no corpo
e então
riscamos fósforos na pele
para distrair as sombras
O calor é bom
e a luz é boa
mesmo se medida
pelo tamanho de um fósforo
Antes os dedos a arder
dentro de casa
que escorregar sozinho
no meio da rua
Portanto
riscamos fósforos na pele
e quando sorrimos
basta apertar os botões
para esconder as marcas
que como tudo o mais
hão-de passar

11.7.05

O arqueiro

O arqueiro é o
último descendente das aves.
Desapossado da herança do voo,
a sua voz toma forma
na libertação da flecha
- ovo do desejo, cópula cega
entre dois pontos que nunca se tocam.
Não lhe é dado possuir a vítima
no momento em que a atinge;
apenas o eco da respiração,
a humidade já morna das vísceras,
a carne complexa que não responde.
Não lhe resta mais que
a dor nos músculos.
Tudo se separa de si mesmo,
até a vibração com que
o seu desejo rasga o mundo,
e o corpo estremece-lhe
como se cruzasse os ares.

10.7.05

A minha saia

A minha saia é debruada de
dentes brancos
- saia rodada com pregas
e esconderijos que se abrem
sobre os precipícios da infância

É uma saia alta como janelas
remendada pelas mãos cuidadosas dos amantes

Debaixo da minha saia há
uma caixa com botões e olhos
que encontrei no leito seco dos caminhos
há um girassol que me aquece
o farelo e o sal dos ossos
há uma colmeia e o crescente negro
da sombra a roçar os joelhos

Há o riso dos velhos

Som de cordas, velas de moinho,
fábulas e exércitos balançam
dentro da minha saia
quando danço

Debaixo da minha saia há também casas
sopradas onde recolho o vento, e delas se avista
o pescoço curvo de dois bois mansos
alisando o pasto

Rodo o corpo e a minha saia aponta para o sul
baixo-a para desenhar círculos na poeira
ergo-a para atravessar o rio
na hora em que
a maré sobe
sobe
sobe

26.6.05

###

Seria fácil enlouquecer aqui, devagarinho.
Aqueles que já me viram
sabem que o faço com delicadeza,
como quem ajeita a saia sobre a curva do joelho.
Enlouqueço sem fazer promessas
e sem pedir nada a ninguém,
de tal forma que a minha loucura
já foi confundida com correntes de ar
e apressaram-se a fechar as portas e as janelas.
As coisas retomam assim a imobilidade
visível e pacífica para que foram criadas,
e há que saber esperar atentamente,
respirando sempre, até que os cantos
da sala estalem de riso.

19.6.05

##

Fiz a minha viagem mais longa
detive-me um pouco mais
a olhar as flores e a desordem dos caminhos
e voltei atrás a medir cada braço
de cada encruzilhada.
Bati a mais portas, mais vezes
escutei a voz que de dentro respondia
e houve em mim uma inclinação de esperança
para essa aparição inaugural de um rosto
surgindo do fundo das casas dos homens,
devolvendo-me ao corpo dos frutos e à água.
Sentei-me em pedras dóceis, resignadas,
mergulhei braços e raízes cobrindo os olhos de alegria.
Mas sei que não é esta a minha casa
e vou a caminho
- irei ter convosco aí, onde veremos,
no silêncio, o vento que atravessa os nossos corpos.

13.6.05

e o cisne

num dia de calor acordei nua e com a cama coberta de penas brancas, que se me colavam às coxas e ao peito. não creio nos deuses, mesmo se ocultos, nem no peso das aves.

12.6.05

Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite

Mulheres que caminham sozinhas no bosque à noite
mulheres sonoras alagando de calor as copas dos arbustos,
mordendo o pânico, iluminando o voo dos insectos
Das suas cabeleiras soltam-se pensamentos
como da folhagem inacessíveis aves nocturnas
Ah, essas mulheres atrás de quem se fecha a noite,
que cosem com um fio de sangue os caminhos
Em frente abre-se o peito das mulheres
na direcção do poço mais negro do bosque
abre-se o peito das mulheres
Despiram-se da voz na primeira encruzilhada
e todo o seu corpo é um seixo que enche a boca da noite,
uma pedra solta forçando a passagem entre os veios da noite,
uma contracção de semente que aperta a orla do bosque
- e a poeira ergue-se em torno dos seus pés como
a respiração da fera ao calor dos herbívoros

10.5.05

Neblina subaquática

O ar cinzento e o vento na faia – véu verde –,
a indecisão do calor na base do corpo:
a sala oscila em torno dos gestos,
comprime-se, desvia-se, deixa passar
um ou dois relógios e um
peso sem fotómetro
em queda tranquila até à areia imperturbável.

Tolstoi não se cala. Descreve
a pele de Kitty antes do baile, o ar frio
no corpo, a ansiedade à beira do grito,
o ponto do sonho ao virar dos minutos,
rente à rua,
rente à morte.

No dia do meu aniversario

No dia do meu aniversário
houve uma festa muito grande.
Vieram todos:
o meu pai, a minha mãe,
os irmãos e os avós
e ainda muitos primos e primas,
amigos e vizinhos.
No dia do meu aniversário
- que maravilha, estavam todos comigo:
as minhas bonecas, o bicho papão,
e a primeira pedra que
se me atravessou no caminho
e que alguém me colocou na sopa,
em jeito de brincadeira.
No dia do meu aniversário
vieram dois ou três mortos;
um deles olhava-me com ar severo
- nunca foste visitar-me;
a minha mãe sentou-os à mesa
os corpos tombavam sobre a comida.
A minha tia ria-se muito de tudo,
de um riso áspero como urtigas,
e ia-me enchendo o prato
com os meus doces preferidos.
No dia do meu aniversário
veio um que me deixou com um sorriso,
e outro, mais quente que na memória,
que se entreteve, toda a tarde,
a brincar com um palito
que me espetava no braço,
rodando-o devagar - lembras-te?
A minha avó quis ler em voz alta
o meu diário de adolescente
e rimo-nos todos muito.
Houve sol e sombra em abundância
e todos me sorriam como flores
de pétalas grandes e bem regadas.
A minha mãe tinha guardado a roupa interior
da minha primeira menstruação,
lavada e dobrada em três, e dançámos a isso,
isso de já ser uma mulherzinha.
No dia do meu aniversário
veio também um homem que no Metro
me apalpou e se roçou na minha perna
enquanto entredentes dizia não sei o quê;
trouxe-me um ramo de flores
e o meu pai quis saber, piscando o olho:
é este o teu namorado?
No dia do meu aniversário
os meus cães e os meus gatos
vieram também ver-me
mas as suas cabeças macias
caiam-me das mãos
como flores secas.
Ainda agora limpei este chão,
queixava-se a minha avó,
varrendo-as para a pá
e atirando-as por cima do muro
para o jardim do vizinho.
No dia do meu aniversário, ao anoitecer,
os amigos que não via há muito
juntaram-se aos de todos os dias;
sentaram-se em cima do meu vestido
e não me deixaram ir-me embora.
Eu estava muito cansada;
na verdade, eu queria ir deitar-me
para que viesse o dia depois do meu aniversário,
mas eles não saíam de cima do meu vestido
e eu tinha vergonha de me despir
à frente de todos, e então ri-me muito,
agradeci as prendas, e esperei
que caísse a noite.

1.5.05

Maio

Cumpre inaugurar o mês de Maio:
31 dias sem férias à sombra do sol.
Paredes, papéis, agrafadores, tesouras,
clips, despachos, vénias, vénias, vénias, a
espinha dorsal a desfazer-se nas descidas,
a vontade a desfazer-se nas subidas e o
lodo por baixo de todas as pedras
onde a cidade seria nossa.

Ou a terra.

Inaugurar Maio: celebrar a existência dos pioneses
entre o material de escritório mais insuspeito,
urdir um terrorismo dos pioneses, a vitória dos pioneses,
o regresso dos pioneses às cadeiras onde pertencem.

29.4.05

Diagonal sem tecto.

A rua, os carros, a praça e os prédios em volta.
A noite, a paragem do autocarro, a espera e
os papéis do dia no bolso das calças.
O relógio, o sono, a impaciência.
O cheiro baço do trânsito que escoa:
um cinzeiro, tabaco velho, estores fechados.

E não há tecto, não há telhado, não há lustres,
não há dia de limpeza, telefones, aspiradores;
não há gravatas, sandálias novas, penteados platinados,
saltos, madeixas naturais, revistas, receitas ou lições.

O tempo grande é escuro e certo e começa na base dos candeeiros.
A manhã, contínua, tarda e permanece.

A única coisa errada é fazerem-se os passos sempre na horizontal.

As palavras-cruzadas, que não têm esqueleto,
não lêem livros e que frequentam
- sem distinção de ascendência, sexo, raça,
língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução,
situação económica, condição social, orientação sexual -
as salas de espera de todos os consultórios,
possuem maior agilidade.

1.4.05

Corpo maior

A praça abafada ao cair da noite
suor no pescoço, sandálias em Abril
pergunto se é doentio o calor, se o fogo
corre sozinho nos sulcos das fontes
imediatamente por baixo das raízes das árvores.
Interrompo o jardim com gestos de Verão
para molhar as mãos no repuxo.
Antes do rosto, detenho o hábito: demoro
antigos e alheios
os dedos na água imprecisa.

24.3.05

Riem-se e riem-se

Riem-se muito
as raparigas
de azul bordadas
riem-se e correm
e rasgam os ares
com risos azuis
e dentes de prata

Riem-se agora
as raparigas
de saias vermelhas
riem-se e rodam
as saias às flores
as saias e as cores
à volta das mesas

Riem-se ainda
as raparigas
de blusas brancas
riem-se e rompem
as blusas de mangas
largas abertas
e enroscam as tranças

Riem-se todas
à volta das eiras
em gargalhadas
abertas rasgadas
como clareiras
escancaradas
com braços e bocas
e pernas em barda

(E os rapazes
acham-nas parvas)

21.3.05

Daqui vê-se o mar

Passo a tarde a discutir com um amigo se daqui se vê o mar.
Eu digo que sim. Ele diz que não.
Diz-me que confundo algumas nuvens baixas com o mar.
Mas é o mar, digo eu.
Diz-me, ainda, que confundo a linha horizontal
dos telhados, ao fundo, com o mar.
Mas é o mar, digo eu.
O meu amigo irrita-se comigo,
diz que se vai embora
e começa a deslizar pelo chão.
Cada vez se alonga mais,
frio e húmido e azul como um peixe;
deixa no chão um rasto de espuma
e desaparece pelo mar adentro.

10.3.05

anti-flash

na retina não ficou nada
excepto a lonjura de andrómeda
que no espaço se torna noite lisa

nos meus olhos nenhum sangue pode ser medido

9.3.05

fim

cessaram os vislumbres ao adormecer.
agora, dentro do corpo é o
ruído. fora do corpo está
o ruído.

na sombra, vinte mil escravos
preenchem com capitulares as paredes da cidade.
desenham, experimentam capitulares.
com zelo genuíno.

8.3.05

a estátua

onde o corpo se parte
ao mover-se

pode ser no meio do jardim
dentro de água
pode haver no ar e na respiração
a evidência da árvore nova
antes dos olhos

onde o corpo
renuncia

teatro II

é de dentro o mundo transfigurado,
e a clausura
um círculo de erva além do medo.

é no avesso que a voz principia.
é do avesso que a voz se alimenta.

teatro

a pele é a única roupa que tenho;
a intenção do movimento e o gesto
que o concretiza, a voz que rasga a luz,
as únicas tendências que reconheço.
e a vanguarda vem escoltada pela memória
no fim do cortejo.

se passos soam no meio do tempo, avanço;
se passos soam a meio do tempo, recuo.

petrifico-me no sol,
no cheiro a pó da tarde,
nas mil liberdades azuis em que o dia agoniza:
todas possíveis,
todas vedadas.

a sombra está cheia de escravos.
a sombra está cheia de escravos.

Nada na mão

Aprendi um novo truque de prestidigitador
que ensaio nos intervalos entre mim e o palco
fazer desaparecer palavras
fazer desaparecer o rio entre um dia e outro dia
sou um homem que engole fogo
sou um homem que devora um lenço leve
de tecido vermelho, até ao último fio
- nada nas mãos,
seca a boca.

20.2.05

Arrumações

Um homem só cabe em qualquer lugar
no espaço entre os dentes e as palavras
no ângulo estreito que escapa ao calor
que derramam os casais de namorados
nos breves instantes em que é reconhecido
para logo esquecerem os seus traços.

Um homem só é prático e portátil
Não ocupa paisagem nem memória
limpa as migalhas, não estorva a passagem
A sua mão disponível torna o lar
mais confortável, e as crisálidas
que respiram nos seus sonhos não despertam,
agitadas, contra a luz da noite alheia

16.2.05

Labareda

Assinalo a antecipação da Primavera
queimando lençóis.
O terreno é vasto, é claro o horizonte,
a chama é branca contra a pele.
Gritam os pássaros e as feras
dos meus lençóis que ardem.
Há uma forma ondulante de mulher
que corre entre as árvores,
o cabelo inflamado de lâminas azuis.
Há línguas de fogo na minha língua
e o olho amarelo de uma ave de rapina
suga o odor e o fumo das suas presas.
O lençol é um caudal de fogo
que lanço pela janela,
uma labareda invisível que de súbito
queima e treme no ar de quase Primavera.

14.2.05

Paisagem

Fazer as coisas pela ordem irreversível do poema
abrir a mão antes que chegue a flacidez da tarde
inspirar no instante em que se pousa o pé no chão
e aninhar nas pálpebras a cor e o sal do dia
recolher a língua um minuto antes da chuva
dar o seio como música à memória, e então
deitar no mesmo leito, em desordem,
as múltiplas deflagrações do corpo
colocar o riso antes do instante, a pedra antes do verso
a faca sobre a mesa antes da boca fechada

7.2.05

hipótese e antecipação

domingo ao sol
o poema diria o som das pedras sob
os passos aleatórios, os altos
e baixos da voz no vento frio.

quando quieto, o corpo morno
diria sobre o cheiro da giesta
que não há nada mais verde
(se os cheiros têm cores)
e que está quase.

4.2.05

*

branco e curvo
o caudal manso da fala
branca, sonora,
uma cascata
dentro da boca
branda a pele
no momento
da queda
branca e leve
a palavra
um lençol
silencioso
sobre o leito