27.9.05

A birra

Dez minutos de choro bastariam,
se não me obrigassem a ser crescida.
Viriam ver-me chorar alguns brinquedos que perdi:
a bola que desapareceu pelo muro do quintal num dia frio;
a boneca que ficou debaixo de uma árvore depois de um piquenique;
o triciclo vermelho, esquecido no alvoroço de catar caricas na lama seca.
Todos únicos, todos insubstituíveis, todos grandes perdas,
todos assombrosos berreiros na separação.
E eu, manifestamente inocente, de goela à mostra,
sozinha num planeta inteiro de cúmplices perversos
que não arrancam os cabelos na minha desgraça,
que não se ajoelham em desespero comigo e
que ainda me propõem um sol ao lado do meu,
quase igual, nem vais notar, é tão bonito,
quando é claro que o mundo assim não pode continuar,
eu não posso continuar, nem mesmo com outra bola,
outra boneca ou outro triciclo.
Dez minutos.

23.9.05

Mocho

Chegado pois o dia de distribuir
todas as coisas que possuía,
eu sem saber – o dia
apanhada de surpresa com nada
mais que um mocho morto
no chão da sala
ave calada e macia
Tudo o mais desaparecera
excepto aquele mocho de cor parda
como um ninho
esvaziando-se tranquilamente
Bela ave, penso eu olhando-o,
bela ave no chão da minha casa
foste tu que levaste a minha casa?
Quando eles vierem eu não terei
mais nada para lhes dar
e para mim nunca quis nada tanto
quanto este mocho fechado
onde pouso as mãos
como pode ser só isto, penso
mas ainda assim hão-de querer-te também
eu sei
ainda que lhes repugne o silêncio
e a morte
a tua beleza de ave fria e delicada

16.9.05

Haja tristeza que baste

Haja tristeza que baste
para chegarmos ao Inverno.
Tristeza que baste para que os dedos
da minha mão toquem os dedos
da minha outra mão.

Haja tristeza que baste para a sagrada imitação do riso.
Tristeza que baste para mantermos a temperatura da pele.
Para apagarmos as marcas dos nossos passos.

Haja tristeza que baste para acordar os pássaros
e para espantar os espíritos da casa.
Haja tristeza que baste para que a mesma história
seja contada de forma sempre diferente.
Haja tristeza para lavar os dentes muito brancos,
tristeza para haver vontade,
tristeza para que o pescoço se alongue lentamente
quando subirem as águas do rio.

Haja tristeza que baste para
enchermos a gaveta de coisas inúteis
e para não pensarmos hoje na morte.