4.6.09

a cobra

Naquele tempo era a cobra.
Fugia à nossa frente por entre
as ervas rasteiras da horta.
Verde. Grossa. Desenroladamente
fugia. Um dia fecharam-me
na casa da lenha. Riam-se. Era
a casa da cobra. Era a casa do
ninho da cobra, diziam, onde
a cobra punha os ovos pela boca,
onde os filhos da cobra ferviam
e brilhavam. Verdes. No escuro,
eu ouvia. Cada cobra ao cair
partia-se em mil pequenas cobras
e cada uma delas em mais mil,
até cobrirem o chão, as paredes
e todos os buracos. Diziam que
as cobras procuravam as mulheres
à noite. As cobras bebiam leite.
As cobras, disseram, iam beber
o meu leite. Bebê-lo e sugar-me
e eu ia ficar cada vez mais pequena.
Desaparecer dentro de mil
cobras faiscantes. Riam-se,
já iam longe. Tudo isto, bem sabia,
era porque eu já tinha maminhas
mesmo sem ter idade para ter
maminhas. E as outras meninas, não.

15.5.09

o domador de esdrúxulas

                      áspera
                      ríspida
                       rígida

                      chicote
                      chicote
                      chicote
                      chicote
                      chicote

                      plácida
                     lânguida
                       lívida

30.4.09

Imaginário Involuntário

É de tanto espaço que não sei o que fazer.

Não pedi mas puseram-me aqui.

Deixaram-me aqui e eu podia
voar para todos os lados do granulado da terra,
fértil e húmido nas mãos.

Podia voar para dentro do poço até ao eco
até ao frio e ao escuro
até ao miado aflito do gato preso na irregularidade da pedra.

Podia abrir os olhos até ao branco da água
e respirar até ao fim da tarde –
até ao cheiro enjoativo da erva doce,
até à hora em que as cigarras se calam e os grilos retomam o silêncio.

Em vez disso, estou quieta.

24.3.09

As hortas

Entardece nas hortas. O calor não vem de cima, mas da terra
e sobe-me até aos joelhos enquanto caminho pelos regos
de água já secos. Entardece no olho negro da flor das favas,
nas alfaces debicadas pelos pardais. Já entra a sombra nos alvéolos
das folhas verde-azul das couves, altas como rosas.
Não há abelhas a furar a copa negra das laranjeiras,
nem o roçagar de seda das asas dos gafanhotos,
nem a carne dura das suas pernas. Já não. Vai baixando o calor
dos joelhos aos tornozelos, vai pousando o som sobre a terra mais escura.
Para onde foi a água? Tudo se aquieta, tudo entardece com a tarde,
tudo se dissolve no ar como areia mais fina – as alfaces macias, as favas pálidas,
os meus pés quietos sobre a terra. Resistem os figos verdes e duros
cravados na árvore, como testículos de gato, sugando a seiva, o leite,
a lenha. Crescem para dentro, incham em silêncio.

26.2.09

A sombra e o gato

Não no gato, mas na sua sombra
está o perigo.
Na lâmina em crescente
das orelhas.
Na cabeça ampliada sobre
o chão,
território dos dentes
e da garra.
Sombra, selva portátil escondida do sol.
O corpo um escudo
Sombra presa sob as patas,
novelo à espera
do salto.