30.8.05

O que às vezes imagino em frente aos espelhos

Abrir a pele do peito com as mãos:
uma página para cada lado, como nos livros.
No lavatório, o avesso líquido dos gestos.

28.8.05

Dedal

Usa o dedal
para não picares os dedos
- dizia-me a minha avó,
e eu não usava o dedal
nem picava os dedos.
Com a agulha desenhava carreiros
de formigas pela bainha fora,
pregava botões de dois e quatro olhos,
franzidos, fitas e colchetes -
trabalho de rigor e paciência
que me educou na medida dos minutos
para maior glória e beleza
das minhas bonecas.

Com a mesma agulha tentava
mais tarde juntar o que no meu
corpo a cada dia se separava
em metades: os seios, o sexo,
as ancas e também o olhar
tirando as medidas
ao chão e ao tecto da casa.
As mãos, uma de cada lado.
À noite, também sem dedal,
cosia e descosia no
meu peito os mamilos.
Vestia-me e despia-me em silêncio.

22.8.05

Leva-me à tua aldeia

Leva-me à tua aldeia
leva-me de novo à tua aldeia

Pois na minha aldeia eu
semeei a peste
afoguei os cães e os gatos
queimei as árvores e os navios
arranquei as roupas dos velhos
e atirei-os para a beira da estrada
deixei as crianças morrer à fome
e pior que isso
parti-lhes todos os brinquedos
envenenei os caminhos e os pátios
enegreci a água das fontes e amaldiçoei a luz

Por isso
leva-me por favor à tua aldeia
há-de haver a tua aldeia
ou deixa-me ao menos uma pedra fechada na mão

21.8.05

Impérios

Os dedos das mãos.
Os dedos dos pés.
A pele do nariz.
O pó do chão.
O pêlo da gata.
Os meus cabelos.
As férias da empregada.
As férias do meu chefe.
Os ponteiros do relógio.
A noite que não tenho.
O som da guitarra.
O laço do medo.

Hipótese

Se eu não for dançar
Sejam os vidros das janelas
E o chão dos pátios
Cobertos de água
(Seja a chuva clara
E não pese sobre a mão)
Permaneça o musgo rente ao muro
E sigam ordenadas as formigas
Sem ocorrência de catástrofe maior
Que a do zelo húmido dos cães

19.8.05

Ser a mão que

Ser a mão que prende a flecha
o tempo devorando a flecha
a boca que tritura o silvo da flecha
o olho alucinado do girassol
cravando na luz a flecha

11.8.05

Que bonitas estavam

Que bonitas
estavam as mulheres
que vi hoje
passar na rua
- vêm decerto da casa
do meu amante

E como traziam
os olhos longos de
corça a ruminar
o sabor espesso
dos ombros e do ventre
do meu amante

As suas pernas ressoam
ainda como cordas
e das mãos soltam-se
os dedos com que
contaram os dentes
do meu amante

Irrepetíveis são
os seus passos
pela cidade e largo
o caudal que abrem
quando vêm da casa
do meu amante