20.2.05

Arrumações

Um homem só cabe em qualquer lugar
no espaço entre os dentes e as palavras
no ângulo estreito que escapa ao calor
que derramam os casais de namorados
nos breves instantes em que é reconhecido
para logo esquecerem os seus traços.

Um homem só é prático e portátil
Não ocupa paisagem nem memória
limpa as migalhas, não estorva a passagem
A sua mão disponível torna o lar
mais confortável, e as crisálidas
que respiram nos seus sonhos não despertam,
agitadas, contra a luz da noite alheia

16.2.05

Labareda

Assinalo a antecipação da Primavera
queimando lençóis.
O terreno é vasto, é claro o horizonte,
a chama é branca contra a pele.
Gritam os pássaros e as feras
dos meus lençóis que ardem.
Há uma forma ondulante de mulher
que corre entre as árvores,
o cabelo inflamado de lâminas azuis.
Há línguas de fogo na minha língua
e o olho amarelo de uma ave de rapina
suga o odor e o fumo das suas presas.
O lençol é um caudal de fogo
que lanço pela janela,
uma labareda invisível que de súbito
queima e treme no ar de quase Primavera.

14.2.05

Paisagem

Fazer as coisas pela ordem irreversível do poema
abrir a mão antes que chegue a flacidez da tarde
inspirar no instante em que se pousa o pé no chão
e aninhar nas pálpebras a cor e o sal do dia
recolher a língua um minuto antes da chuva
dar o seio como música à memória, e então
deitar no mesmo leito, em desordem,
as múltiplas deflagrações do corpo
colocar o riso antes do instante, a pedra antes do verso
a faca sobre a mesa antes da boca fechada

7.2.05

hipótese e antecipação

domingo ao sol
o poema diria o som das pedras sob
os passos aleatórios, os altos
e baixos da voz no vento frio.

quando quieto, o corpo morno
diria sobre o cheiro da giesta
que não há nada mais verde
(se os cheiros têm cores)
e que está quase.

4.2.05

*

branco e curvo
o caudal manso da fala
branca, sonora,
uma cascata
dentro da boca
branda a pele
no momento
da queda
branca e leve
a palavra
um lençol
silencioso
sobre o leito