24.3.05

Riem-se e riem-se

Riem-se muito
as raparigas
de azul bordadas
riem-se e correm
e rasgam os ares
com risos azuis
e dentes de prata

Riem-se agora
as raparigas
de saias vermelhas
riem-se e rodam
as saias às flores
as saias e as cores
à volta das mesas

Riem-se ainda
as raparigas
de blusas brancas
riem-se e rompem
as blusas de mangas
largas abertas
e enroscam as tranças

Riem-se todas
à volta das eiras
em gargalhadas
abertas rasgadas
como clareiras
escancaradas
com braços e bocas
e pernas em barda

(E os rapazes
acham-nas parvas)

21.3.05

Daqui vê-se o mar

Passo a tarde a discutir com um amigo se daqui se vê o mar.
Eu digo que sim. Ele diz que não.
Diz-me que confundo algumas nuvens baixas com o mar.
Mas é o mar, digo eu.
Diz-me, ainda, que confundo a linha horizontal
dos telhados, ao fundo, com o mar.
Mas é o mar, digo eu.
O meu amigo irrita-se comigo,
diz que se vai embora
e começa a deslizar pelo chão.
Cada vez se alonga mais,
frio e húmido e azul como um peixe;
deixa no chão um rasto de espuma
e desaparece pelo mar adentro.

10.3.05

anti-flash

na retina não ficou nada
excepto a lonjura de andrómeda
que no espaço se torna noite lisa

nos meus olhos nenhum sangue pode ser medido

9.3.05

fim

cessaram os vislumbres ao adormecer.
agora, dentro do corpo é o
ruído. fora do corpo está
o ruído.

na sombra, vinte mil escravos
preenchem com capitulares as paredes da cidade.
desenham, experimentam capitulares.
com zelo genuíno.

8.3.05

a estátua

onde o corpo se parte
ao mover-se

pode ser no meio do jardim
dentro de água
pode haver no ar e na respiração
a evidência da árvore nova
antes dos olhos

onde o corpo
renuncia

teatro II

é de dentro o mundo transfigurado,
e a clausura
um círculo de erva além do medo.

é no avesso que a voz principia.
é do avesso que a voz se alimenta.

teatro

a pele é a única roupa que tenho;
a intenção do movimento e o gesto
que o concretiza, a voz que rasga a luz,
as únicas tendências que reconheço.
e a vanguarda vem escoltada pela memória
no fim do cortejo.

se passos soam no meio do tempo, avanço;
se passos soam a meio do tempo, recuo.

petrifico-me no sol,
no cheiro a pó da tarde,
nas mil liberdades azuis em que o dia agoniza:
todas possíveis,
todas vedadas.

a sombra está cheia de escravos.
a sombra está cheia de escravos.

Nada na mão

Aprendi um novo truque de prestidigitador
que ensaio nos intervalos entre mim e o palco
fazer desaparecer palavras
fazer desaparecer o rio entre um dia e outro dia
sou um homem que engole fogo
sou um homem que devora um lenço leve
de tecido vermelho, até ao último fio
- nada nas mãos,
seca a boca.