14.6.07

Tacto fantasma

Às vezes, na casa reconstruída,
se me concentro numa tarefa ou num livro
e me esqueço onde estou – a luz apaga-se
até meio, mesmo a do sol –, voltam
as paredes antigas, o cheiro das madeiras e
o cheiro do pó, e nas minhas mãos recomeçam
as coisas que já não existem.
Ontem, passei meia-hora a abrir
e a fechar a porta do sótão:
maçaneta pequena,
de porcelana cinzenta,
meio saída do lugar -
nunca tinha reparado que era oval.

28.4.07

Quando tenho muita vontade

Quando tenho muita vontade
faço de conta que está a acontecer
tão perto que só pode ser comigo
arrasto a língua devagar e com ela
vou recolhendo as migalhas
que quase sabem a pão
que quase pesam um homem
que quase são de verdade

23.4.07

Sobre ir

Sobre ir de um ponto a outro não tenho nada a dizer. Já confundi uma estrada com um rio.

8.2.07

uma dor assim

É uma dor assim
um tanto difícil
escorregadia
contorcionista
alegre
uma dor, devo dizê-lo,
um pouco infantil,
não pára quieta
não me dá descanso
irritante
uma dor que se me agarra ao pescoço
que me acorda a meio da noite
risca os meus livros
entorna-me o copo
sai todos os dias
com as minhas roupas
e apaga-me
a luz

17.1.07

as vozes

Deus fala muito comigo
mas em línguas que não entendo
Fala-me baixinho
e às vezes, à noite,
digo-lhe "Deus, por favor, deixa-me dormir"
Ele cala-se por um instante
e depois recomeça
E eu digo-lhe "Deus, por favor, deixa-me;
que vens tu aqui fazer, falar comigo assim,
em línguas que não entendo -
acaso achas que preciso
de ouvir vozes;
de que me recordes todos os dias
como estou sozinha?"
E Deus fala mais e mais
quer-me às vezes parecer -
como se não acreditasse em mim.