5.12.11

Acção de formação

Se quiseres falar como um adulto verdadeiro
- daqueles que não têm vidas malucas
nem dão desgostos aos pais -,
transforma todos os verbos em dois
e cada dois verbos em quatro
e quatro, se puderes
- a seriedade encontra sempre os recursos
adequados -,
em oito
e assim sucessivamente até sessenta e quatro
- terás da música, ao menos, os múltiplos.

Usa muitos particípios:
Implementado, que é obrigatório;
Disponibilizado, que parece bem;
Inserido, que demonstra trabalho.

Não tentes transmitir informação ou conhecimento relevantes
Que possam ser aproveitados para uma vida melhor
mais simples ou mais à medida das necessidades humanas.

O discurso profissional deve soar assim: profissional.
E fechado. E chato.

Que a curiosidade elementar sobre o mundo
sobre estar aqui
e, da tua voz, a vivacidade
sucumbam esmagadas contra as paredes
como as borboletas nocturnas em pânico dentro dos candeeiros
e os mendigos dentro da fome.

17.10.11

4.9.11

Uma laranja pode atrair-me ao teu quintal



Uma laranja pode
atrair-me ao teu quintal
mas também
o céu reflectido nas janelas,
ou até
o anel que brilha na tua mão
quando fechas a porta.

Uma flor, sim, uma flor
pode atrair-me
ao teu quintal
ou um insecto
- pássaro, flor -
na verdade, um verme
pode atrair-me
ao teu quintal.

Um buraco na terra, ervas daninhas
podem atrair-me
ao teu quintal.

Esse pedaço de pele entre
o teu ombro e o teu pescoço
pode atrair-me
ao teu quintal
de um modo geral, aliás,
o corpo
ou o som de um fruto a cair
pesado demais
no chão do teu quintal

- o balde da água
migalhas de pão
o cair da noite
a luz acesa
o cheiro a comida
podem atrair-me
ao teu quintal.

22.6.11

um dia, o trabalho será proibido

um dia, o trabalho será proibido.
deixará de ser oficial,
dirá o governo nos jornais nacionais de maior tiragem.
mandará escrever
e ninguém perguntará porquê.

– são as ordens que tenho.

dirão os funcionários enviados
para fechar as portas das fábricas, das lojas, dos escritórios,
queimar os campos e afundar os barcos dos que insistirem.

– porquê?
– são as ordens que tenho.

e a voz, dizendo as palavras,
dirá também a censura.
e quando tudo estiver fechado
e todos os homens quietos
e as casas silenciosas,
a fome será proibida.

– já não há fome.
– porquê?
– já não é oficial.
– porquê?
– são as ordens que tenho.

depois, a curiosidade e os livros
o frio e a roupa
a pele e a água
o sono e a sombra
e em geral todas as coisas de ser gente
corpo e mundo
tudo deixará de ser oficial
e tudo será proibido.

e os homens subirão aos parapeitos das janelas
abrirão os braços
e voarão sobre as cidades.

e mais não se saberá deles
porque a morte será proibida.

28.4.11

aqui me tens

A minha aldeia é igual a todas

as aldeias, isto é, nela há

um homem que um dia ao fim

de muitos anos há-de abrir

a porta e despir-se deixando

cair a roupa no cimento

da entrada e depois vai

caminhar até ao muro e chamar

a mulher que mora na casa

ao lado e naquele momento

arranca a erva do canteiro

das alfaces e dizer-lhe:

aqui me tens.

12.1.11

A toalha


A mãe sabe
truques
de magia

a mãe
põe a mesa

assim:

a mãe lança
a toalha
sobre a mesa

e durante um segundo
dois
a toalha fica
suspensa

(ainda)

como uma tenda de circo
e depois
devagarinho
como muito perto
do fim do mundo
a toalha

pousa.

A mãe sabe
tantas coisas
e também
onde não havia nada
agora
o copo, o prato,
a água, o pão.

5.1.11

A padeirinha

A padeirinha caíu
no fundo do alguidar
coitada da padeirinha
caíu de fazer tanta força
todo o dia a amassar.

A padeirinha caíu
na masseira com o pão
coitada da padeirinha
caíu de tanto tender
a massa na palma da mão.

A padeirinha caíu
no forno pelo calor
coitada da padeirinha
caíu de tanto cozer
sumiu-se de tanto suor

Agora não há padeirinha
não há forno nem pão mole
Era baixa e redondinha
cabia num alguidar
embrulhada num lençol.