22.7.05

Cidade nova.

É meio-dia, está calor e
eu estou na rua errada.

Uma só porta chega, do frio da pedra,
do frio da sala alta.

Diz que tem janelas,
Janelas como vigias a controlar a luz,
E que no tecto não se desfez a madrugada.

Visto-me.
A minha avó vem de longe pentear-me.
Atravessaremos juntas o sol todo até à casa da minha tia,
pensa.
Mas a porta passa porque a cidade é nova e
a minha avó diz que tenho o cabelo muito empeçado,
que já não tem mais tempo.

Só uma porta.
Nenhum átrio sombrio.
A água cala-se.

20.7.05

Vem ver a minha casa

Estas são
as minhas
quatro
paredes

Esta a porta
de sair e entrar

E as janelas
fica com uma
se gostares

17.7.05

Fósforo

Temos medo do escuro no corpo
e então
riscamos fósforos na pele
para distrair as sombras
O calor é bom
e a luz é boa
mesmo se medida
pelo tamanho de um fósforo
Antes os dedos a arder
dentro de casa
que escorregar sozinho
no meio da rua
Portanto
riscamos fósforos na pele
e quando sorrimos
basta apertar os botões
para esconder as marcas
que como tudo o mais
hão-de passar

11.7.05

O arqueiro

O arqueiro é o
último descendente das aves.
Desapossado da herança do voo,
a sua voz toma forma
na libertação da flecha
- ovo do desejo, cópula cega
entre dois pontos que nunca se tocam.
Não lhe é dado possuir a vítima
no momento em que a atinge;
apenas o eco da respiração,
a humidade já morna das vísceras,
a carne complexa que não responde.
Não lhe resta mais que
a dor nos músculos.
Tudo se separa de si mesmo,
até a vibração com que
o seu desejo rasga o mundo,
e o corpo estremece-lhe
como se cruzasse os ares.

10.7.05

A minha saia

A minha saia é debruada de
dentes brancos
- saia rodada com pregas
e esconderijos que se abrem
sobre os precipícios da infância

É uma saia alta como janelas
remendada pelas mãos cuidadosas dos amantes

Debaixo da minha saia há
uma caixa com botões e olhos
que encontrei no leito seco dos caminhos
há um girassol que me aquece
o farelo e o sal dos ossos
há uma colmeia e o crescente negro
da sombra a roçar os joelhos

Há o riso dos velhos

Som de cordas, velas de moinho,
fábulas e exércitos balançam
dentro da minha saia
quando danço

Debaixo da minha saia há também casas
sopradas onde recolho o vento, e delas se avista
o pescoço curvo de dois bois mansos
alisando o pasto

Rodo o corpo e a minha saia aponta para o sul
baixo-a para desenhar círculos na poeira
ergo-a para atravessar o rio
na hora em que
a maré sobe
sobe
sobe