19.12.06

as rosas

Procurar as rosas e cobrir a soleira de rosas. Se necessário, cortar as rosas. Renunciar por vezes às rosas. Cultivar e repreender as rosas. Comer algumas rosas. Não olhar a direito as rosas. Se chegar Janeiro, podar as rosas. Cobrir com pudor as raízes das rosas. Estender o braço entre os caules sem tocar as rosas. Deixar morrer devagar as rosas. Ver apodrecer as rosas. Querer as rosas, e querer ainda mais e de novo as rosas e querer muito falar das rosas. Ao passear com um amigo num dia de Inverno, sem dar por isso recordar com ele as rosas. Abrir uma excepção para as rosas.

18.12.06

leite

Tenho leite no peito e
leite na boca e
nos olhos.
O mundo passa por trás de uma
película translúcida de
leite derramado.
Leite gordo.
Leite bom.
Onde tocam os meus dedos
aí fica leite
e quando me rio
espalha-se o leite
como uma nascente apertada
do espaço por entre os dentes
e tudo me sabe a leite
ao meu leite nas gengivas brancas.
Ouço-o:
leite no estômago e nas veias
leite quente entre as pernas
espuma de leite a sair da pele
e o cheiro o cheiro o cheiro
o cheiro este cheiro a leite.

15.11.06

ao lado

Eu queria muito meter conversa
com o rapaz sentado na mesa
ao lado, porém
a única coisa que tenho
para lhe contar é que
hoje de manhã cosi
a bainha da minha saia.

Ele não deve saber como
a minha mão é exacta
no momento de coser
a bainha da saia
da sua flexibilidade de
aranha paciente e táctil
cada dedo um arco
de violino.
(escuto)

Não tenho nenhuma outra
coisa que valha a pena contar
mas falar disso ao rapaz
- não sei.

Meu

Este braço não é meu.
Este riso, este ombro,
este leito,
este passo não é meu.
Nem o ar quando respiro.
Não é meu o rio nem
meu é o testemunho
nem o cordel
em torno do pulso
que não é meu.
Falo dum sonho que não é meu.
De uma forma precisa de cortar o pão.
Nada disso é meu.

13.10.06

intervalo

I

porque é aí que te quero
do outro lado
deste grão de areia


II

ah, mas eu já aprendi
a desaparecer
quando fecham os olhos
para se rirem
escondo-me atrás
dos cortinados
ninguém me vê


III

por aqui
subo
aonde eu estou
por aqui
vem o vento
e lá vou eu
por aqui
abaixo


IV

qualquer canto em vão
de escada me chega
para fazer o ninho
(olha, está ali
um passarinho)


V

o que tens na boca
não é teu


VI

fugiste dos meus sonhos
não queres aparecer
agora não têm graça
nenhuma
sou só eu sentada
à espera


VII

bom era se viesses
à hora em que o meu
pescoço está mais tenro

8.10.06

rapunzel

fui à janela e
soltei as minhas tranças

a noite inteira a soltar
as tranças à janela
enquanto a casa ardia

alguns treparam-me
pelas pernas acima
porém
ninguém quis as minhas tranças
e eu tinha-as lavado
estavam perfumadas
as minhas tranças
que ninguém quis

cheirava a queimado lá dentro
mas à janela estava fresco
constipei-me
sinto febre
nas pernas
não é mais nada
só esta febre nas pernas
a casa queimada
e as tranças
como as hastes de um veado
no Outono

16.9.06

em viagem

E quando rodei o corpo em
direcção ao sul eu soube
que a partir desse dia já não
queria ser aquele que chega
e parte, mas sim
o que fica
e vê partidas, chegadas e
mãos que lhe acenam à porta
de passagem.
É esse que sente o sorriso
recolher devagar como um
cão que se deita para
a sesta no silêncio
final da tarde.

8.9.06

De noite

Chega de noite - como o homem que um dia
na infância vi no meu quarto e ainda hoje
não sei quem era.
Lembro-me de um fato escuro
lembro-me de uma sombra uma mancha uma nódoa
ao lado da minha cama
coisa grande que se movia devagar
inclinada sobre a mesa de cabeceira.
Depois virou-se e afastou-se até à porta -
eu fingia dormir, o mundo inteiro
fazia um som de fera negra
a respirar a farejar-me o corpo.
Dele não guardei mais que o vulto
escuro e curvo uma vírgula gigante
no meu quarto o som seco e retido
dos passos no tapete e do roçar da roupa
como uma boca que tenta prender a voz.
Nunca soube quem era
o que fazia ali o homem.
Oh mistérios da infância!
E hoje, mais uma vez, chega de noite.
É outra coisa.

17.8.06

Expiração

Um ano inteiro a tentar
que não chegasse Setembro.

Mas as coisas cansaram-se do Verão.
Expiram. Abrandam. Olham o chão.

E tu que sempre me
lembraste uma flor
recolhes-te em sombra e silêncio.

10.5.06

a mesa

pusemos a mesa na mesa
e pusemos a mesa
no chão pusemos a mesa
na areia da praia e
no sofá e pusemos a mesa
na cama e na erva
que cresce no quintal
das traseiras e pusemos
a mesa entre duas pedras
redondas e pusemos a mesa
à sombra de uma
nogueira e pusemos a mesa
onde quer que coubesse
a toalha branca da nossa
primeira manhã

8.5.06

estando eu sentada debaixo duma laranjeira

Estando eu sentada debaixo duma laranjeira
a bordar lençóis, sozinha estava,
e puxei a saia e abri
as pernas para que o sol entrasse
onde nunca tinha entrado
e então nisto veio um passarinho
e pousou-me entre as pernas
ora
isto nunca me tinha acontecido
(era bonito e pequenino, o passarinho,
pardo com um olho amarelo de búzio)
Saltitava de cá para lá como
se estivesse contente por voltar ao ninho
e fazia-me cócegas

Para não o assustar pus de lado o bordado
apoiei as mãos na terra e mordi os lábios com força
ele devia ter fome porque começou a debicar
de mansinho como quem procura
grãos de trigo entre a erva
e fazia-me cada vez mais cócegas
era uma serpentina de cócegas a desenrolar-se
dentro de mim, do meio das pernas até à cabeça
e até aos dedos dos pés
e então
soltei uma enorme gargalhada
e quando olhei de novo ele tinha partido
(teria ido para dentro?, ainda pensei,
mas embora tentasse não conseguia ver)

De casa minha mãe chamou-me;
eu baixei a saia, dobrei o lençol, arrumei
as linhas e as agulhas de bordar e voltei
e nunca lhe contei nada

E ainda hoje isto me dá vontade de rir.

20.4.06

as mulheres despem-se ao sol

as mulheres despem-se ao sol
nas janelas ao sol
nas mesas ao sol
nas eiras e nos estendais
ao sol
as mulheres despem-se

29.3.06

Pente

Não faltarei ao encontro em que
mais uma vez irás pentear o meu cabelo

Onde está quem possa dizer
como penteaste o meu cabelo

Estávamos no centro do mundo e
ninguém nos viu
Recordo o som do pente
a desordem amansada nas tuas mãos

O vento levou fios do meu cabelo
que não poderemos reunir
A lua nova não nos iluminou, mas as estrelas
cobriam-me a nuca de tão longe
Eu sabia de todo o teu corpo atrás de mim
como uma mão afagando a corça

7.2.06

Penélope II

amotinaram-se as linhas do tear de Penélope
perdeu-se o linho lavrado da paisagem
nada lhe ordena agora os dedos ou o olhar

o mar engrossa jovens monstros e na terra apodrecem
os frutos que sobraram de todos os verões
só a janela estende uma última coluna
de luz em lenta coreografia pela casa

à noite não terá mais o que fazer

20.1.06

Época balnear

Era o tempo em que havia nas nossas praias poetas em tronco nu,
poetas adormecidos sobre a areia ou rodando os braços vagarosos,
a saltar as ondas como quem abraça o dorso de um cavalo.
Eram poetas de pele salgada, que rolavam a língua contra os dentes
e remoíam inquietos um fino e antiquíssimo grão de areia
- poetas flectidos sobre as pregas da barriga, e poetas vibrantes,
estalando o peito dourado e sonoro como um tambor cheio de sol.
Havia poetas friorentos de pernas brancas,
a ver os dedos enterrar-se em vão, e outros que colhiam
cordões de algas e escondiam o umbigo com fartas cabeleiras.

Nós, as meninas, iamos até à praia para ver os poetas.
As mais atrevidas conseguiam levá-los para as dunas;
despiam-nos, deitavam-nos, e riam-se depois dos arranhões
dos cardos sobre a pele. Algumas lambiam da ponta dos dedos
uma pequena gota do sangue dos poetas - e de que
outra forma podiamos mostrar o nosso amor por eles?

As outras, tímidas, molhavam os pés na maré baixa, espreitavam-nos
pelo canto do olho, apanhavam búzios e olhos de boi;
alguns poetas - via-se - sentiam embaraço, viravam-se,
sacudiam um e outro pé; elas acompanhavam
em segredo: bem me quer, mal me quer, esquerdo, direito,
- que belas eram essas raparigas, todas elas, querendo deixar
a marca dos seus seios nos versos balneares dos poetas.

Dispersos e inéditos poetas, nadando até ao largo,
cada vez mais pequenos, onde nem vozes nem mãos podiam salvá-los
- poetas perdidos que davam à costa longe, muito longe.

6.1.06

Naquele tempo

Falavam do seu desejo
como de um leão terroso e exilado
e da bainha da voz soltava-se
o gume dos dentes cintilantes.

Tinham recordações;
estendiam-nas sobre o ventre
como na superfície de um lago,
e tomavam o sabor das mãos molhadas.

Falavam em torno de uma palavra;
arremetiam contra os espinhos
laboriosos da sua própria paixão.
Calavam-se. Morriam. Recomeçavam.

5.1.06

Este é o tempo

Este é o tempo das arrumações,
o tempo de sacudir o pó dos muros
e de fazer com eles um lugar onde dormir,
uma mesa onde apoiar os cotovelos.

É o tempo de tirar as flores de plástico
dos vasos que tombaram sobre a terra.
É o tempo de varrer a pedra seca,
este é o tempo de varrer a pedra seca.

É o tempo de deixar partir os mortos queridos
das casas edificadas nas margens das ruas,
e de lhes meter no vazio dos olhos o miolo de pão
com que regressarão aos nossos sonhos.