4.7.19

ver televisão e morrer


os antigos só punham pratos nas prateleiras

depois de acordar de madrugada
limpar-se, vestir-se, ir buscar água
limpar o quintal, alimentar os animais
alimentar-se, alimentar as crianças

despejar os penicos, limpar os penicos

recolher os animais
lavar, lavar-se, cozinhar
tratar das crianças, tratar dos doentes
tratar dos velhos 
alimentar, alimentar-se
deitar-se e dormir

não sobrava tempo para ler

sabe deus que também não precisavam:
na missa, o padre explicava-lhes tudo
como viver, o que pensar, como pensar

como não pensar

os que não sabiam latim
viam os bonecos nas paredes da igreja

3.12.16

Criação


Nos primeiros seis dias
a mulher
criou a galinha
e ao sétimo 
sentou-se a descansar
e a tomar conta da criação.

Parada no degrau
olha os bichos na capoeira
e aperta na mão ainda húmida
a lâmina da faca.

Cabe à mulher escolher a galinha
e a sua hora.

Por agora
ela descansa.
Ganha alento para a morte.

Não sabe de onde lhe chega
o momento em que
já se levantou para fazer
o que tem de ser feito.
Ouve o anjo, mas não o vê.

7.9.16

os beatos


os beatos têm sempre um sorriso bondoso
que sorriem da mesma forma para o mais perfeito desconhecido
para a família e para os amigos
próximos e distantes.

é um sorriso que brilha no esmalte dos dentes muito brancos
(os beatos não descuram as idas ao dentista
porque os beatos gostam de ficar bem nos retratos).

os beatos desejam bem a todas as pessoas:
o bem de deus, por isso não gastam o seu.

os beatos têm a certeza
e olhos de ter a certeza
e um sorriso certo, que não vacila,
que não começa a começar nem a acabar:
um sorriso que se acende e se apaga
num instante
eficientemente
como todos os electrodomésticos.

20.11.15

Muito correm as mulheres da limpeza


Muito correm as mulheres da limpeza
para apanhar o autocarro
mas as pernas curtas
mas as solas finas
mas o semáforo vermelho
mas o peso das compras
nas duas mãos

Querem voltar a casa como todos nós
as mulheres da limpeza
mas o casaco apertado
mas as coxas afastadas
mas o cheiro a lexívia
mas a pele luzidia
das suas mãos

28.10.15

Senhoras e senhores


Senhoras e senhores
meninas e meninos
apresento-vos

A mulher

Capaz de fazer
desaparecer coisas
dentro do seu próprio corpo

(várias
e de várias maneiras)


A mulher

E agora, quem do amável
público se oferece
para
quem do amável público
quem do amável público

27.5.15

gestos de vestir

sempre que compro uma peça de roupa
nova, lembro-me do pó e do sangue seco
nas roupas e nos sapatos que os mortos
abandonam nas ruas

nas imagens de guerra, fixo-me
nos colarinhos, não sei porquê. penso
"esta pessoa estava viva quando vestiu
esta camisola". penso "como eu, agora"

14.4.15

Metafísica dos sofás

O gato é o animal na casa que diz
- Está aqui o sol.
E o sol passa a existir.

É o gato que traz o sol para casa.
E osgas e pássaros e moscas.

E sofás.

Nunca nenhum sofá existiu, inteiramente,
Sem um gato.

26.6.13

Os ciclistas



Anda comigo, irmã,
pôr-te à janela
a ver os homens passar.

Lado a lado,
debrucemo-nos
sobre a rua
amparando o decote
como um braçado de rosas.

Hoje é Domingo
dia de ver passar
os ciclistas
com os seus rabos apertados
e que eles,
inclinados sobre a curva,
sejam para nós
como um bando de corças
na súbita clareira da floresta.

Então nós, as meninas,
bateremos palmas
estremecendo o peito.

A mais tímida
há-de cravar as mãos
na sua própria carne,
enquanto a outra
irá pender pela cintura
estender os braços
e apalpá-los.