11.1.10

No comboio

Nenhum homem me amou mais
do que o homem que se sentou
ao meu lado no comboio.

Amou-me durante vinte e cinco minutos,
profundamente, sem olhos para mais nada.
Amou o meu perfil,
as minhas mãos a segurar o livro,
amou todas as vezes que olhei pela janela.

Amou-me de um sítio onde
não era capaz de falar-me do seu amor.
E quando se levantou, e me deixou para sempre,
ofereceu-me uma lâmina de madeira, limpa e macia,
dizendo que era para eu marcar
as páginas do livro: toda a riqueza do seu reino.

10.1.10

A morte do primo António

O primo António morreu atropelado
aos 23 anos. Contaram-me em pequena
que ele acabava de voltar para casa,
atravessou a estrada pela frente
do autocarro e o motorista não o viu.
Filho único, a mãe disse-me que ainda
há dias, ao adormecer, lhe sentiu as
mãos macias pousar na cara, e que ele fala
com ela fazendo cair os objectos da cozinha.

Com o primo António aprendi a nunca
atravessar a estrada à frente dum autocarro.

Só muitos anos mais tarde vim a saber
que não foi um autocarro. O primo
António morreu atropelado por um automóvel
quando voltava das aulas, noite escura
(depois de alguns anos meio perdido,
tinha voltado a estudar). O condutor
do carro, que ia bêbado, arrastou
o corpo estrada fora. Disse, mais tarde,
que pensava que era um gato.

Com o primo António aprendi a nunca
atravessar a estrada à frente dum autocarro.