21.11.12
Ovo, pera
Na mesa, a pera
ao lado, o ovo
(eu, olho)
- o primeiro a rir
perde o lugar.
Ovo
e pera
lado a lado
sobre
a mesa.
É gota?
É ovo.
É gota?
É pera.
Não fala,
é pera.
Se cala,
é ovo.
Coisa
que cisma
e pasma.
A pera
o ovo
e eu
à mesa
querendo aprender
qual é qual
quem é quem.
O segredo:
olhar atento
não vão
num segundo
de distracção
trocar de lugar
- a pera tombada
fechada
redonda
o ovo teimoso
equilibrado
num só pé
Assim são
as coisas
quando as pousamos
em cima da mesa
em vez de comê-las.
26.9.12
Lista de espera
Palavras em espera
para o poema
(berlindes
no baloiço
da língua):
goraz
vaso
cordão
claustro
aragem
29.5.12
O amante
Queria saber
qual deles foi o teu amante
(coisas que soubemos
no dia em que por fim
soubemos de tudo o mais)
Queria saber se ele é
o mesmo que também eu
teria escolhido no teu lugar
Para saber, mãe, se somos
tão parecidas
como toda a vida ouvi dizer.
qual deles foi o teu amante
(coisas que soubemos
no dia em que por fim
soubemos de tudo o mais)
Queria saber se ele é
o mesmo que também eu
teria escolhido no teu lugar
Para saber, mãe, se somos
tão parecidas
como toda a vida ouvi dizer.
17.4.12
Acordeão
O meu primeiro amor eu tinha 6 anos, e foi um homem de braços fortes e peludos.
O resto do homem era também forte e imagino (agora) que peludo. Mas eu só lhe conheci os braços largos como a minha cintura inteira, a testa levemente inclinada, mais larga que o queixo quadrado, as têmporas vivas, a boca de muitos dentes.
O homem passava às vezes na minha rua e tocava acordeão.
Parava à porta das casas e abria o acordeão como quem abre o peito, sonoro e peludo, grande demais para as minhas mãos.
O som do acordeão atravessava a rua, atravessava-me o vestido, os cabelos.
O homem ocupava muito espaço. Ocupava a rua inteira e não cabia lá mais nada, nem sequer a sombra.
O homem chegava como o sol do meio-dia. Tudo nele era largo e quente. Tudo nele podia pôr fim ao mundo.
Eu sabia que não podia casar com um homem como ele, por isso sonhava que a minha mãe se apaixonava por ele e que fugíamos os três.
Um dia, o homem ia agarrar a minha mãe pela cintura, quase com força demais, com um só braço, no outro o acordeão, silenciando à pressa uma última nota.
O homem ia levar a minha mãe assim, sentada num braço, como num baloiço, e de tão perto ela ia ver o que eu não conseguia ver cá de baixo: a pele espessa do pescoço a ranger, a raiz azul da barba, a vibração da voz de metal fundo.
Então o homem ia levar a minha mãe para o sítio onde vivem os homens como ele, as ruas onde eu nunca tinha entrado, para lá da última curva, um sítio tão diferente do meu quarto, da nossa casa, da nossa rua.
Um sítio onde aconteciam coisas - aventuras, como nos livros - e os homens faziam os seus próprios instrumentos e de manhã à noite tocavam acordeão. Embora nenhum como ele.
O resto do homem era também forte e imagino (agora) que peludo. Mas eu só lhe conheci os braços largos como a minha cintura inteira, a testa levemente inclinada, mais larga que o queixo quadrado, as têmporas vivas, a boca de muitos dentes.
O homem passava às vezes na minha rua e tocava acordeão.
Parava à porta das casas e abria o acordeão como quem abre o peito, sonoro e peludo, grande demais para as minhas mãos.
O som do acordeão atravessava a rua, atravessava-me o vestido, os cabelos.
O homem ocupava muito espaço. Ocupava a rua inteira e não cabia lá mais nada, nem sequer a sombra.
O homem chegava como o sol do meio-dia. Tudo nele era largo e quente. Tudo nele podia pôr fim ao mundo.
Eu sabia que não podia casar com um homem como ele, por isso sonhava que a minha mãe se apaixonava por ele e que fugíamos os três.
Um dia, o homem ia agarrar a minha mãe pela cintura, quase com força demais, com um só braço, no outro o acordeão, silenciando à pressa uma última nota.
O homem ia levar a minha mãe assim, sentada num braço, como num baloiço, e de tão perto ela ia ver o que eu não conseguia ver cá de baixo: a pele espessa do pescoço a ranger, a raiz azul da barba, a vibração da voz de metal fundo.
Então o homem ia levar a minha mãe para o sítio onde vivem os homens como ele, as ruas onde eu nunca tinha entrado, para lá da última curva, um sítio tão diferente do meu quarto, da nossa casa, da nossa rua.
Um sítio onde aconteciam coisas - aventuras, como nos livros - e os homens faziam os seus próprios instrumentos e de manhã à noite tocavam acordeão. Embora nenhum como ele.
21.3.12
Lida da casa
A tristeza cura-se
com tarefas domésticas
- por exemplo,
a dor de corno
trata-se limpando os vidros
de ambos os lados
se falta o sentido para a vida
recomenda-se fazer um bolo
se necessário
todos os dias
a solidão passa num instante
sentada à mesa
a tirar o fio ao feijão verde
e passar a ferro
seca rapidamente
as lágrimas
isto são coisas
que qualquer mulher sabe
e em caso de dúvida
ou de insónia
lava-se a louça
toda a louça
toda a louça do mundo
com tarefas domésticas
- por exemplo,
a dor de corno
trata-se limpando os vidros
de ambos os lados
se falta o sentido para a vida
recomenda-se fazer um bolo
se necessário
todos os dias
a solidão passa num instante
sentada à mesa
a tirar o fio ao feijão verde
e passar a ferro
seca rapidamente
as lágrimas
isto são coisas
que qualquer mulher sabe
e em caso de dúvida
ou de insónia
lava-se a louça
toda a louça
toda a louça do mundo
13.3.12
1.3.12
passou por aqui há bocado a memória da tua pele
passou por aqui há bocado a memória da tua pele:
enorme – com movimentos de animal antigo
do tempo em que os animais eram todos grandes
e se moviam como a sombra e a luz
quase em silêncio, como a lama e a lava.
não a vi chegar.
apareceu-me primeiro nos dedos, depois
nas palmas abertas das mãos
no olfato, na língua e nos dentes,
na saliva,
por fim, nos pulmões.
quando percebi – porque me ouvi respirar –
já não pude evitá-la.
não que eu faça questão.
esteve aqui a memória da tua pele
e eu esperei que passasse.
já passou.
agora mesmo, acabou de passar:
como as nuvens de água morna passam, sem chover,
pelas tardes de Verão e as escurecem.
agora o ar está pesado.
e eu estou sentada à porta de casa
a ajeitar o cabelo e a alisar a saia
a apanhar partes espalhadas de mim
– aqui um braço, ali alguns dedos –
a tentar encaixá-las umas nas outras e que voltem
a parecer-se comigo
mas as mãos tremem-me e há sons dentro de mim
que não me deixam concentrar.
e fico só a pensar que ainda bem que não é todos os dias
que a memória da tua pele passa assim e se demora
e que preciso decidir se quero ou não reaprender a respirar.
enorme – com movimentos de animal antigo
do tempo em que os animais eram todos grandes
e se moviam como a sombra e a luz
quase em silêncio, como a lama e a lava.
não a vi chegar.
apareceu-me primeiro nos dedos, depois
nas palmas abertas das mãos
no olfato, na língua e nos dentes,
na saliva,
por fim, nos pulmões.
quando percebi – porque me ouvi respirar –
já não pude evitá-la.
não que eu faça questão.
esteve aqui a memória da tua pele
e eu esperei que passasse.
já passou.
agora mesmo, acabou de passar:
como as nuvens de água morna passam, sem chover,
pelas tardes de Verão e as escurecem.
agora o ar está pesado.
e eu estou sentada à porta de casa
a ajeitar o cabelo e a alisar a saia
a apanhar partes espalhadas de mim
– aqui um braço, ali alguns dedos –
a tentar encaixá-las umas nas outras e que voltem
a parecer-se comigo
mas as mãos tremem-me e há sons dentro de mim
que não me deixam concentrar.
e fico só a pensar que ainda bem que não é todos os dias
que a memória da tua pele passa assim e se demora
e que preciso decidir se quero ou não reaprender a respirar.
6.1.12
Vísceras, enxúndias, inglúvias
Vísceras, enxúndias, inglúvias
outros nomes para a alma dos animais
quando a tiramos por nossa mão
Não pela boca, não pelas cavidades
naturais do corpo - onde a carne
é mais mole, por aí entra a faca,
entornando vísceras, enxúndias, inglúvias.
I
Primeiro entre todos os animais, o porco
(dizem: o mais semelhante ao homem)
O porco, depois de esvaziado sobre o chão
tem mais partes cá fora que lá dentro -
tripas fumegantes, fígado ao sol,
o alguidar do sangue que é preciso manter
em perpétuo movimento. A colher de pau
e um fio de vinagre substituem o bater do coração.
Primeiro de todos, o porco, e cabe um homem
dentro da sua carcaça, afastando ao entrar
a cortina de enxúndias. Primeiro de todos, o porco:
oito arrobas penduradas na trave mestra
da casa, a pingar sangue e gordura
toda a noite, como um relógio antigo.
II
O segundo animal é a galinha
e morre também pelo pescoço, embora
às vezes, mesmo já morta e por não o saber,
aconteça a galinha correr ainda sobre a terra.
É esse o momento em que corremos
nós também, lembrando-a de que há
uma ordem natural das coisas.
Mas segunda de todos, a galinha,
acaba por fechar as pálpebras vermelhas
e enrugadas no fundo do alguidar.
Lá dentro há coisas que não existem
no homem - inglúvias, ou seja o papo,
e também a moela onde a galinha guardava
anéis, pedrinhas, sementes, as partes duras
da vida fechadas numa bolsa de músculo
nacarado. Além disso, sendo fêmea
e na altura certa, tacteando com a mão
roubamos do fundo da carcaça
roubamos do fundo da carcaça
um ninho de ovos raiados de sangue.
No fim, cortam-se as esgaravatadeiras
não vá a galinha, outra vez esquecida,
ressuscitar.
III
O coelho, terceiro dos animais
e aquele em que a força da gravidade
é maior e as vísceras mais negras.
Uma vez morto, o coelho fica vazio
e ao despi-lo descobrimos que sãoé maior e as vísceras mais negras.
Uma vez morto, o coelho fica vazio
afinal dois animais. Podemos vê-lo
pelo avesso, branco e baço,
amarrotado sobre o chão, ou preferir
o outro - músculos e olhos e dentes
a pingar dentro do alguidar
E está arrumado o animal.
IV
O peixe, quarto na ordem dos animais,
o único cujos órgãos não têm uso
para aquecer as nossas mãos.
Feito o golpe, um único dedo permite
extrair as vísceras, as tripas,
o fio de sangue coalhado,
a flor das guelras. O peixe,
a flor das guelras. O peixe,
atento, nunca fecha os olhos.
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