17.4.12

Acordeão

O meu primeiro amor eu tinha 6 anos, e foi um homem de braços fortes e peludos.
O resto do homem era também forte e imagino (agora) que peludo. Mas eu só lhe conheci os braços largos como a minha cintura inteira, a testa levemente inclinada, mais larga que o queixo quadrado, as têmporas vivas, a boca de muitos dentes.
O homem passava às vezes na minha rua e tocava acordeão.
Parava à porta das casas e abria o acordeão como quem abre o peito, sonoro e peludo, grande demais para as minhas mãos.
O som do acordeão atravessava a rua, atravessava-me o vestido, os cabelos.
O homem ocupava muito espaço. Ocupava a rua inteira e não cabia lá mais nada, nem sequer a sombra.
O homem chegava como o sol do meio-dia. Tudo nele era largo e quente. Tudo nele podia pôr fim ao mundo.
Eu sabia que não podia casar com um homem como ele, por isso sonhava que a minha mãe se apaixonava por ele e que fugíamos os três.
Um dia, o homem ia agarrar a minha mãe pela cintura, quase com força demais, com um só braço, no outro o acordeão, silenciando à pressa uma última nota.
O homem ia levar a minha mãe assim, sentada num braço, como num baloiço, e de tão perto ela ia ver o que eu não conseguia ver cá de baixo: a pele espessa do pescoço a ranger, a raiz azul da barba, a vibração da voz de metal fundo.
Então o homem ia levar a minha mãe para o sítio onde vivem os homens como ele, as ruas onde eu nunca tinha entrado, para lá da última curva, um sítio tão diferente do meu quarto, da nossa casa, da nossa rua.
Um sítio onde aconteciam coisas - aventuras, como nos livros - e os homens faziam os seus próprios instrumentos e de manhã à noite tocavam acordeão. Embora nenhum como ele.

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