28.12.10

A floresta

Terás de caminhar durante muitos dias.

No primeiro dia vais passar por uma mulher
muito velha que vai pedir-te pão.
Dá-lhe um pedaço de pão.

No segundo dia vais encontrar um cão
que vai pedir-te carne.
Dá-lhe um pedaço de carne.

No terceiro dia, quando chegares
ao princípio da floresta vais encontrar
um copo de leite pousado numa pedra.
Bebe o leite antes de entrares na floresta.

E se não beberes o leite nesse dia
nem no dia seguinte
nem todos os dias, quando chegares
ao princípio da floresta vais encontrar
um copo de leite pousado numa pedra.
Bebe o leite antes de entrares na floresta.

E se não beberes o leite nesse dia
nem no dia seguinte
nem todos os dias, quando chegares
ao princípio da floresta vais encontrar
um copo de leite (outro copo de leite)
pousado numa pedra (a mesma pedra)
Bebe o leite antes de entrares na floresta.

E se não beberes o leite nesse dia
no dia seguinte chegarás
ao princípio da floresta.

22.11.10

o poema lê-se

O poema lê-se
de outra maneira
o poema

fechado na caixa
no meio da sala

é preciso tirá-lo
do caminho
o poema

embora por vezes
se ouçam vozes
assombração
o poema

passando-lhe a mão
no lombo afiado
ele dobra

e ao abrir a caixa
o ar que está fora
não se mistura
com o ar que está dentro

calado

à espera
de saltar-nos
ao pescoço

ela disse rosas vermelhas (a partir de oscar wilde)



ela disse que dançaria comigo
se eu lhe trouxesse rosas vermelha
s

rosas vermelhas
ela disse

se em todo o meu jardim
ela disse
rosas vermelhas

rosas vermelhas
ela disse

que dançaria comigo
em todo o meu jardim

rosas vermelhas
ela disse

ela dançaria comigo
rosas vermelhas

no meu jardim
rosas vermelhas
ela disse
ela disse
se eu lhe trouxesse

rosas
rosas
rosas vermelhas

ela disse
rosas

vermelhas
ela disse

mas em todo o meu jardim
ela dançaria comigo

se ela disse
em todo o meu jardim

rosas vermelhas
ela disse

ela disse que
dançaria com

rosas vermelhas
rosas vermelhas

mas se eu lhe trouxesse
rosas vermelhas
ela

21.9.10

o espelho (a partir de eulalia valldosera)

uma mulher só consegue ver o próprio sexo
com a ajuda de um espelho
uma mulher tem de acreditar no espelho
e tocar a ferida, como S. Tomé

uma mulher ouve muitas histórias
contadas ao ouvido e no fim
acaba sempre por perguntar ao espelho
se é verdade o que não vê

e o espelho abre a boca e diz:




8.9.10

As palmeiras

Estávamos no chão do quarto
da minha avó

à minha frente
os pés brancos da cama de ferro

atrás de mim
os teus braços as tuas pernas

E dizias-me que olhasse
para cima, porque
no céu azul de muitos anos
passavam a voar
as copas das palmeiras
passavam a voar
como grandes pássaros redondos
passavam a voar
com dezenas de asas retraçadas pela luz
passavam a voar
por cima do quarto da minha avó
e tu falavas-me
da cegueira das rotas migratórias

Passavam a voar
e no sonho inquietava-me apenas
não ver no chão a sua sombra

18.7.10

Por outras palavras

Gosto de escutar às portas
quando os outros fazem amor
(ou lá como se diz).
Gosto de pensar que fazem
o que eu também já fiz,
embora
por outras palavras.

14.3.10

Criação

Primeiro, Deus criou
o espinho.
E roçou nele a pele macia
e viu
que era bom.

E depois de picar todos
os dedos, um por um,
e de ver que não havia
mais nada,
Deus criou
o caule
e Deus criou
o verde.

E depois de tingir de verde
o polegar,
Deus criou
a pétala
e juntou a pétala
ao caule
para que o mundo
não acabasse assim,
tão de repente.

E depois lavou
as mãos
e tingiu de rosa
a rosa.

E depois de olhar
o vazio por baixo do caule,
Deus criou as raízes
e à volta das raízes
criou a terra
para as prender.

E depois Deus multiplicou
as pétalas
e chamou-lhe cálice.

Então, Deus olhou
a sua obra

(pausa)

e amassando um punhado
de terra
fez a pedra
e debaixo da pedra
escondeu o insecto
que rasteja
em direcção à rosa.

E Deus,
sentindo que faltava ainda
alguma coisa à sua obra
criou o ar
a água
as estrelas
e o resto do universo.

Ovo

A minha galinha
pôs um ovo.
Eu, fiz um poema.
Hoje é Domingo.
Vesti a bata azul das flores
e fui ter com ela.
O galinheiro cheira a águas velhas,
penas e excrementos.
Eu nunca soube apalpar
as galinhas para ver
se têm ovo.
"Não tomo banho
há sete dias", digo eu.
"Que alívio", diz ela.
Que alívio.
E cacarejamos.

11.1.10

No comboio

Nenhum homem me amou mais
do que o homem que se sentou
ao meu lado no comboio.

Amou-me durante vinte e cinco minutos,
profundamente, sem olhos para mais nada.
Amou o meu perfil,
as minhas mãos a segurar o livro,
amou todas as vezes que olhei pela janela.

Amou-me de um sítio onde
não era capaz de falar-me do seu amor.
E quando se levantou, e me deixou para sempre,
ofereceu-me uma lâmina de madeira, limpa e macia,
dizendo que era para eu marcar
as páginas do livro: toda a riqueza do seu reino.

10.1.10

A morte do primo António

O primo António morreu atropelado
aos 23 anos. Contaram-me em pequena
que ele acabava de voltar para casa,
atravessou a estrada pela frente
do autocarro e o motorista não o viu.
Filho único, a mãe disse-me que ainda
há dias, ao adormecer, lhe sentiu as
mãos macias pousar na cara, e que ele fala
com ela fazendo cair os objectos da cozinha.

Com o primo António aprendi a nunca
atravessar a estrada à frente dum autocarro.

Só muitos anos mais tarde vim a saber
que não foi um autocarro. O primo
António morreu atropelado por um automóvel
quando voltava das aulas, noite escura
(depois de alguns anos meio perdido,
tinha voltado a estudar). O condutor
do carro, que ia bêbado, arrastou
o corpo estrada fora. Disse, mais tarde,
que pensava que era um gato.

Com o primo António aprendi a nunca
atravessar a estrada à frente dum autocarro.