14.12.05

Poema do avesso da eternidade

Há uma multidão que grita, o ar de pedra sobre os móveis,
a escuridão das janelas fechadas. Ruído, sobretudo: o lugar
onde não reconheces o silêncio ou os sons, entre todos,
que são os teus. Pesa, é de pedra o ar e é preciso repeti-lo:
sedimentada e suspensa, porém, para que possas mexer-te nela
ainda que todos os movimentos sejam demorados e difíceis.

Engoles o que ficou da destruição de mil estátuas, as mesmas
que usaste para aprender a segurar uma colher, a alisar a saia,
a pentear o cabelo. A pedra rasga a garganta ao descer,
o corpo espera o corpo funciona o corpo resolve.

E espera-se encostado à parede e acredita-se
um ar de pedra a arranhar a garganta, não para sempre,
um ar imutável de pedra imutável a descer pela garganta
entre a mesma manhã e a mesma noite
e diz-se da clausura e da quietude involuntárias que são indolência,
evitando-se assim a desdita maior das irmandades lamuriantes,
extremamente irritantes, mesmo para um condenado.

Depois, um dia, é preciso recomeçar a respirar. Diz-se.
Mas antes é preciso que chova, que o frio traga um ar limpo,
coisas que nunca irão acontecer porque és imutável encostado à parede.
Antes é preciso semear à sombra, é preciso que venha o coveiro,
que traga pá, flores, lençóis rasgados nos cantos do muito uso,
lençóis escurecidos com a última transpiração dos defuntos.
E tu não te voltas, a parede é lisa e clara nas tuas costas, e não sabes.

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