3.12.16

Criação


Nos primeiros seis dias
a mulher
criou a galinha
e ao sétimo 
sentou-se a descansar
e a tomar conta da criação.

Parada no degrau
olha os bichos na capoeira
e aperta na mão ainda húmida
a lâmina da faca.

Cabe à mulher escolher a galinha
e a sua hora.

Por agora
ela descansa.
Ganha alento para a morte.

Não sabe de onde lhe chega
o momento em que
já se levantou para fazer
o que tem de ser feito.
Ouve o anjo, mas não o vê.

20.11.15

Muito correm as mulheres da limpeza


Muito correm as mulheres da limpeza
para apanhar o autocarro
mas as pernas curtas
mas as solas finas
mas o semáforo vermelho
mas o peso das compras
nas duas mãos

Querem voltar a casa como todos nós
as mulheres da limpeza
mas o casaco apertado
mas as coxas afastadas
mas o cheiro a lexívia
mas a pele luzidia
das suas mãos

28.10.15

Senhoras e senhores


Senhoras e senhores
meninas e meninos
apresento-vos

A mulher

Capaz de fazer
desaparecer coisas
dentro do seu próprio corpo

(várias
e de várias maneiras)


A mulher

E agora, quem do amável
público se oferece
para
quem do amável público
quem do amável público

27.5.15

gestos de vestir

sempre que compro uma peça de roupa
nova, lembro-me do pó e do sangue seco
nas roupas e nos sapatos que os mortos
abandonam nas ruas

nas imagens de guerra, fixo-me
nos colarinhos, não sei porquê. penso
"esta pessoa estava viva quando vestiu
esta camisola". penso "como eu, agora"

26.6.13

Os ciclistas



Anda comigo, irmã,
pôr-te à janela
a ver os homens passar.

Lado a lado,
debrucemo-nos
sobre a rua
amparando o decote
como um braçado de rosas.

Hoje é Domingo
dia de ver passar
os ciclistas
com os seus rabos apertados
e que eles,
inclinados sobre a curva,
sejam para nós
como um bando de corças
na súbita clareira da floresta.

Então nós, as meninas,
bateremos palmas
estremecendo o peito.

A mais tímida
há-de cravar as mãos
na sua própria carne,
enquanto a outra
irá pender pela cintura
estender os braços
e apalpá-los.

Colo


Sou mulher
ou seja
tenho sempre
qualquer coisa
ao colo
qualquer coisa
prestes a cair
se por um instante
distrair as mãos

e quando não tenho nada
então
as próprias mãos
melhor pousá-las
sobre os joelhos:
assim
bem à vista

e se nem as mãos
então
o difícil equilíbrio do mundo
sobre a curva do joelho
qualquer desatenção
(um suspiro)
pode ser fatal

6.3.13

Maria Alice



Para que queres tu tantos cabelos, Maria Alice?
Tantos cabelos e tantas pernas, Maria Alice,
diz-me, para que queres tu tantas pernas?
E braços - meu Deus, o que há em ti de braços!
Maria Alice, diz-me, quanto tens de costelas?
E quanto de pescoço, Maria Alice?
Quanto de subir e descer entre o ombro
e o lóbulo da orelha? E dedos, Maria Alice,
para que são tantos dedos? E nos dedos
tantos ossos, tantas unhas, tantas direcções?
Devo falar do teu colo, Maria Alice? Dos teus seios?
Dos teus muito, muitos seios, semeados de sinais?
Ou desses caminhos de montanha que são
as tuas coxas, as tuas íngremes nádegas
- quantas nádegas, Maria Alice!
E - que vejo eu, Maria Alice? Para quê tantos umbigos?
Teu ventre, Maria Alice, cravado de botõezinhos...
Ah!



19.2.13

às pessoas que




Às pessoas que dizem que o sofrimento é uma força criativa:
O sofrimento é uma grandessíssima merda. É isso que é o sofrimento.
Quando estou triste não quero escrever versos, não quero sequer que antes aconteçam, não quero que cheguem vindos da rua ou da sujidade das minhas unhas ou do raio que os parta.
Construir e desconstruir a alegria. Só. Desfazê-la ou pintá-la com aquela cor parda que é o resultado da mistura de todas as aguarelas. Mas que seja alegria.
Porque o sofrimento é uma merda.
E um verso ressabiado é uma coisa muito feia e despudorada.